Câmara está para votar urgência de projeto que equipara aborto a homicídio

Está para ser votado no congresso a urgência de tramitação do PL 1904/2024 do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ).

O Projeto conhecido como da gravidez infantil simplesmente considera o aborto realizado após 22 semanas de gestação crime de homicídio com penas de até 20 anos de prisão, mesmo nos casos de gravidez resultante de estupro. Isso afetaria implacavelmente as meninas vítimas de estupro pois tanto os ciclos de abuso perpetrados contra elas como a gravidez demoram mais tempo para serem identificados do que em mulheres adultas.

Esse PL 1904/2024 aumentaria ainda mais a situação brutal de meninas e mulheres serem forçadas a clandestinidade. O aborto inseguro já acontece no país que pune a maioria dos casos, tendo como consequência sequelas na saúde e mortes de meninas e mulheres. Isso sem falarmos nos problemas psicológicos devido a estigmas e tabus.

É um absurdo isso estar em pauta é misoginia escancarada querer transformar o aborto em homicídio. Legalizar o aborto é um direito humano das mulheres. Parem de atacar os nossos direitos!

Criança não é mãe!
Pelas vidas de meninas e mulheres!
Vivas nos queremos!

Projeção no centro de Porto Alegre pela descriminalização de mulheres e legalização do aborto no ano de 2021. Mais imagens dessa ação aqui

A fala de Eduardo Bolsonaro escancara a misoginia da linguagem pretensamente inclusiva

É possível que agora que o Eduardo Bolsonaro se referiu às mulheres como “portadoras de vagina” as pessoas compreendam o quanto é ofensivo e reducionista utilizar termos como este para se referirem a nós mulheres. “Portadoras de vaginas”, “pessoas com útero”, “pessoas que gestam”, são termos tidos como inclusivos, já que falar ‘mulheres’ é excludente na cabeça de muitos que se dizem progressistas. Então se você fala que absorventes deveriam ser gratuitos para as mulheres, alguém vai ‘exigir’ que você ‘corrija’ o termo para “pessoas que menstruam” porque “mulheres trans” não menstruam. Eu sei que também dizem que são termos para incluir “homens trans” que não querem ser chamados de mulheres. Mas isso nunca resolveu nada nem para essas pessoas que não podem ser reduzidas a portadoras de genitais ou órgãos, é uma coisa desumanizante. É ofensivo e é uma forma de apagamento de mulheres. A palavra mulher tá quase uma palavra proibida. Quando feministas apontam o problema desses termos de “substituição” somos atacadas com xingamentos e taxativamente comparadas com conservadores. Isso deveria servir de aprendizado também para que os debates com feministas sejam feitos com argumentações e não ataques convenientes e de silenciamento de mulheres. Porque por conservador, olha ele aí.

‘De repente’ soou ruim, estranho, misógino e nitidamente como um ataque as mulheres se referir as parlamentares como portadoras de vaginas. É o que nós feministas radicais estamos dizendo faz muito tempo. Até mesmo entre feministas temos tido dificuldades quando denunciamos que somos desumanizadas constantemente com a utilização de termos proclamados inclusivos. Termos que só resultam no desaparecimento do porquê das nossas lutas e no nosso próprio desaparecimento. Isso porque mulher é pertencer a uma classe subjugada, e somente nos reconhecendo como classe que é possível nos organizarmos e combatermos as opressões contra nós. Se não existe mulher não existe opressão contra a mulher.

‘Dysphoric’ – Fugindo da mulheridade como quem foge de uma casa em chamas [tradução livre] – Documentário

Documentário feito pela escritora, cineasta e ativista feminista Vaishnavi Sundar. Lançado ontem online e gratuito.

Tradução livre por Ação Anti Sexista:

‘Dysphoric’ é uma série documental em 4 partes sobre a ascensão da Ideologia da Identidade de Gênero, seus efeitos em mulheres e meninas – especialmente nos países em desenvolvimento.

Sinopse: Neste mundo distópico aonde a misoginia é generalizada e a mulheridade é mercantilizada, ser mulher tem um preço. As corporações capitalizam os corpos de mulheres confundindo a definição do sexo biológico, enquanto lucram com a pseudo ciência não comprovada da teoria queer. O “gaslighting” tem a cumplicidade da mídia, da academia, do mundo político e das leis. Não é nenhuma surpresa que mulheres jovens estejam fugindo da mulheridade como quem foge de uma casa em chamas. Na última década houve um número crescente de garotas buscando transicionar através de procedimentos arriscados e irreversíveis. ‘Dysphoric’ é uma série documental em 4 partes sobre a ascensão da Ideologia da Identidade de Gênero, seus efeitos em mulheres e meninas – especialmente nos países em desenvolvimento. O filme trata da transição de gênero, dos permanentes efeitos colaterais dos hormônios e cirurgias, do lobby das corporações “progressistas” que glorificam milhares de formas estereotipadas de gênero reunidas numa moda, do crescente policiamento de pronomes, do sequestro da linguagem ao chamar mulheres de “menstruadoras”, e dos múltiplos obstáculos que as mulheres encontram quando tentam questionar a misoginia dos novos tempos. O filme dá voz para quem destransiciona, médicos, psiquiatras, sociólogos, feministas, acadêmicos e cidadãos preocupados. ‘Dysphoric’ foi feito em um ano, durante o confinamento da COVID, entre cancelamentos.

Para assistir Playlist aqui: http://bit.ly/dysphoric21 Como não há garantia de que o documentário fique online porque sempre existe a chance de cancelamento, visite http://bit.ly/limesodafilms para ver outras fontes.

A Vulva Ferida Gigante

Diva- foto: Acervo pessoal

Parte I (embora cronologicamente escrita depois da parte II traz o contexto como introdução para este artigo)

Diva é a vulva gigante esculpida na Usina de Arte que fica no município de Água Preta em Pernambuco. A obra foi sentenciada e a artista atacada tanto pela direita quanto pela esquerda, unidas pela misoginia. A artista plástica Juliana Notari diz que a vulva é também uma ferida aberta representando as violências misóginas. Em mais de uma entrevista a artista conta um pouco da história de Diva. No início dos anos 2000 ela encontrou num ferro velho diversos espéculos ginecológicos de aço, usados por médicos para examinar o colo do útero, e neles estavam gravados o nome da pessoa que os utilizava, a “Dra. Diva”. A artista fez várias performances com estes espéculos, abrindo fendas em formato de vulva em superfícies e lugares diversos, sempre com a conotação de ferida aberta. Ela também utilizava sangue de boi nas performances e depois passou a usar sangue da sua própria menstruação. No último dezembro ela finalizou e publicou nas redes a instalação Diva, a vulva ferida gigante.

Se sucederam os ataques à obra e à artista que foram se multiplicando, parecendo como naquelas brincadeiras de telefone sem fio que no final a frase original já está completamente deturpada, não restando nada do que foi dito inicialmente. Houve uma fabricação de motivos para que se encaixassem em argumentos descabidos em relação a obra. Mesmo mulheres se desassociaram do que também lhes pertence para se juntaram aos homens em inúmeras reclamações. Foi realmente uma ousadia ter escancaradas a céu aberto as mazelas misóginas. Os ataques descortinaram a repugnância tanto pelo órgão feminino em si, como de quem ele tá falando. Não se pode falar de mulheres.

Quando nós feministas apontamos a misoginia presente nos ataques que apareciam de absolutamente tudo que é lado, as pessoas também nos diziam que a obra é ruim. Esta crítica é completamente sem fundamento quando colocada como argumento válido de que isso não nos permite falar da misoginia. Como se o gosto ou a erudição das pessoas em artes plásticas realmente fossem relevantes ou impeditivos para denunciarmos misoginia. A misoginia a gente denuncia em qualquer lugar que ela apareça e isso não precisa nem mesmo significar que estamos defendendo todos os aspectos do alvo em ataque. Além disso muitas coisas que mulheres fazem são colocadas como feministas sem nem mesmo serem, só por terem sido feitas por uma mulher. E as pessoas nos insultam EM VÃO, alegando que achamos isso e aquilo empoderador, quando nós já criticamos o discurso liberal de empoderamento feminino. Vocês estão atrasados no debate e ainda fazem a gente e vocês perderem muito tempo com questões superadas. Todo mundo tem direito a uma opinião, mas nós arriscamos cair no ridículo ao sair por aí falando de coisas que não temos muito ou nenhum conhecimento como se fossemos especialistas. Além disso foi de extrema desonestidade criar suposições com discursos misóginos disfarçados de justiça social.

Doutora Diva 2006 – foto: Acervo pessoal

Parte II (resposta aos ataques publicada na página do facebook em 06.01.2021)

A vulva é parte do corpo de metade da população do mundo, e ainda assim ela causa asco na sociedade. E a gente sabe que é porque existe ódio às mulheres. A vulva jamais é um símbolo de violência, mas é um símbolo de violada, onde se comete violência masculina. E embora aqui eu esteja falando em símbolos, a vulva é uma parte orgânica real do corpo de mulheres, por onde muita opressão e violência acontecem de fato. A “vulva ferida gigante” segundo a artista, é para questionar a sociedade fálica. Como que a sociedade responde? Ficamos enojados com a sua vagina.

A artista posta fotos e dentre elas algumas com os homens que trabalharam na obra. Eu acho que se ela não tivesse postado a foto o pessoal iria pensar que foi ela sozinha que construiu uma instalação de 33 x 16 x 6 metros. É verdade que na maioria das vezes construtores civis são homens negros e que isso é um fato inegável do racismo estrutural. Este apontamento nem por isso desfaz, elimina como passe de mágica em como funciona a misoginia. Existindo ódio às mulheres e desprezo e nojo das “nossas partes”, desprezar essas questões é sim misoginia pura. Como é possível menosprezar o nojo coletivo e o ultraje nacional à vagina e se sair como guerreiro da justiça social?

Nós feministas só estamos dizendo “ei estamos falando de uma vagina/vulva aqui por favor entenda isso não ignore ou desrespeite isso”. As pessoas querem realmente que feministas não enxerguem as reações de ojeriza e desconforto que nossa genitália causa? Vocês podem apontar o racismo estrutural contido na engenharia civil do país mas não podem esperar que a gente se cale diante de todas evidências de misoginia que se sucederam.

Vocês estão cientes de que a vagina/vulva é atacada por diferentes razões em diferentes contextos assim como diferentes tempos na história? Vocês estão cientes que atualmente, neste tempo que estamos agora, não só a imagem, mas só a menção da palavra vagina é considerada transfobia? Tanto é que a escultura também está sendo acusada de excludente porque não inclui “mulheres trans”, e pasmem, acusada de GENITALISMO. E nenhuma pessoa trans tem vagina? Pois é né, essas pessoas que tem vagina não importam.

O que vocês querem de fato de nós mulheres? Que desapareçamos da face da terra carregando nossas genitálias em sacos esterilizados cuidando para que não encostem em nada e de preferência pra bem longe daqui?

Diva – foto: Acervo pessoal

Parte III – A vulva gigante para mim.

Aqui o que digo não tá sendo usado para rebater os ataques, como eu já disse, o gosto não é o que importa, porém minha impressão de alguma forma se relaciona com as reações da sociedade. Isso porque assim como para as pessoas causou asco, e uma necessidade urgente de atacar o que viram, para mim foi o oposto disso. E não me parece que isso tem relação única com estética. Mesmo assim, eu posso dizer que achei impressionante e muito bonita a imagem de uma vulva vermelha a céu aberto no meio de uma montanha. E também inesperada. Sem conseguir decifrar muito bem porquê, eu sorri e tive uma sensação de alegria. Provável que muitas mulheres sentiram parecido. O que eu vi pareceu me conectar com todas as mulheres ao mesmo tempo, possivelmente pela sua dimensão e localização. Não que eu tenha PENSADO assim no momento que vi, mas eu senti assim. As opressões que lutamos para derrubar, acontecem em função da nossa materialidade corporal, somos mulheres, seres humanos que possuem vulvas e que são capazes de gerar. Estas opressões servem para nos suprimir. Uma vulva vermelha gigante no horizonte carrega uma simbologia de territorialidade, de demarcação de um espaço e da impossibilidade de sua invisibilidade. Não tem como não ver.

__

Diva – foto: Acervo pessoal

“A vulva, ao longo da história ocidental, sempre foi um tabu. Sempre foi proibido, mutilado, as mulheres em alguns países têm o clítoris arrancado, enquanto, nos chafarizes, há água saindo de pênis esculpidos. É um medo absurdo, porque é um lugar que todo mundo passa, a gente nasce por ela. É por ali que todo ser vivo passa. Mas desperta um medo primitivo, uma repulsa. O medo vem da potência da mulher, a capacidade de gerar e de sangrar todo mês”. – Juliana Notari

Pelo Fim da Violência Contra as Mulheres – 25 de Novembro

O dia 25 de Novembro foi escolhido como o Dia Internacional de Combate a Violência Contra a Mulher em homenagem as irmãs Mirabal. Conhecidas como “Las Mariposas”, Patria, Minerva e María Tereza foram brutalmente assassinadas em 1960 por combaterem fortemente a ditadura de Rafael Leônidas Trujillo na República Dominicana. Nesta data também se incia a Campanha dos 16 dias pelo Fim da Violência Contra as Mulheres que dura até 10 de dezembro. O 25 de Novembro compõe o calendário de lutas feminista, e tem como propósito alertar sobre as violências cometidas contra as mulheres.

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, 1.206 mulheres brasileiras foram assassinadas em 2018. Houve um aumento de feminicídios de 11,3% em relação ao ano de 2017. Em 88,8 % dos casos o agressor foi companheiro ou ex companheiro, a violência contra as mulheres é misógina e é masculina. Os dados mostram que, em 2018, 66.041 casos de violência sexual foram registrados. Isso equivale a 180 estupros por dia, representando um aumento de 4,1% com relação à 2017. E ainda 263.067 casos de lesão corporal dolosa, isso representa 1 registro a cada 2 minutos.

Com a pandemia do Coronavírus as violências contra as mulheres aumentaram devido a maior convivência com os agressores por razão do confinamento. A dificuldade das mulheres de procurarem e conseguirem ajuda durante o isolamento e a sensação de impunidade que os homens sentem com o próprio isolamento, são fatores que agravam. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) destaca que os casos de feminicídio cresceram 22,2%, entre março e abril deste ano (2020) em 12 estados do país, comparando ao ano de 2019. O Rio Grande do Sul é um deles. O Brasil está em 5º lugar no ranking de feminicídios dentre 83 países, perdendo apenas para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia. Com a pandemia houve um aumento de violências contra as mulheres e também de subnotificação, devido a dificuldade de locomoção e o fechamento de locais de atendimento públicos.

Mais sobre:

Em Defesa dos Direitos de Meninas e Mulheres, e Repúdio às Violações desses Direitos

Na última semana o país assistiu a uma série de violações dos direitos da menina de dez anos, do estado do Espírito Santo, estuprada pelo tio desde os seus 6 anos. No início do mês de agosto, se sentindo mal e com fortes dores abdominais, a menina foi levada por uma familiar para atendimento médico e foi constatada a gravidez. A legislação brasileira permite o aborto nos casos de gravidez decorrente de estupro, gravidez de risco à vida da gestante, ou anencefalia do feto. O procedimento no caso desta menina estava amparado pelos dois primeiros casos da legislação. O caso foi parar no Tribunal de Justiça do Espírito Santo para ser analisado, embora não cabia ao TJES a decisão, pois já existe uma Norma Técnica do Ministério da Saúde que não exige a apresentação de Boletim de Ocorrência ou de autorização judicial nestes casos. Mas assim aconteceu e a espera pela autorização judicial foi mais uma violação dos direitos da menina prolongando ainda mais o seu sofrimento.

É desolador o fato do termo gestante se aplicar a uma menina de dez anos. A banalização das violências contra meninas e mulheres chega ao ponto de não nos darmos conta, ou não nos dá tempo para escrutinarmos cada e todo aspecto da barbárie. Estamos sobrecarregadas lidando com o obscurantismo, o fascismo e o fundamentalismo religioso que nos obrigam a apontar a todo instante os direitos humanos básicos de uma menina. É avassalador.

A menina foi estuprada pelo tio por quatro anos que também a ameaçava caso contasse para alguém. Essa menina vivia sob violência e coação. Foi lhe tirada a infância e forçada desde pequenina a ser tratada “como uma mulher” – e aí a gente poderia cavocar ainda mais sobre como nós mulheres somos tratadas numa sociedade que nos odeia. A violência masculina é estrutural, sistêmica – o caso desta menina para nosso infortúnio não é um caso isolado. Segundo dados do DataSus, do Ministério da Saúde, em média seis meninas de 10 a 14 anos abortam diariamente no país. Esses dados porém conferem aos notificados, das meninas que têm acesso ao atendimento em hospitais, sendo assim, podemos apenas imaginar a quantidade real de meninas que abortam. Mas não são todas que abortam, dados oficiais apontam que anualmente, 26 mil partos em média são de meninas entre 10 e 14 anos. E isso é estupro de vulnerável em massa, cada uma dessas meninas grávidas foi estuprada, e forçada a ser mãe. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, a cada hora quatro meninas de até 13 anos são estupradas no Brasil – esses também correspondem apenas aos dados notificados.

Depois da autorização judicial, a impontualidade do procedimento (embora por todas razões urgente), seguiu-se quando os médicos do hospital Hucam da cidade de Vitória se recusaram a realizar o aborto. Tendo seu direito negado, a menina então teve que viajar para o estado de Pernambuco. “Enquanto isso” a extremista de direita ultra antifeminista conhecida como Sara Winter (nome em referência a nazista inglesa Sarah Winter, que em 1935 se juntou à União Britânica de Fascistas), expôs o nome da menina e o endereço do hospital da Universidade de Pernambuco, incitando que seus seguidores fossem impedir o procedimento médico legal. Com o endereço divulgado, um grupo de fundamentalistas religiosos foram à frente do hospital em Pernambuco. Esse grupo que na sua heterogeneidade máxima deve ser composto de conservadores, fascistas e fanáticos, dificultaram o acesso do médico responsável pelo procedimento, o chamaram de assassino, tentaram invadir o hospital, e causaram tumulto a uma instituição que se exige da sociedade um mínimo de silêncio e respeito com as pessoas que lá se encontram necessitadas de atendimentos variados. Mas nada importava ao grupo que tinha como única motivação dar continuidade às violências e traumas daquela menina. O que as pessoas desse grupo queriam? A manutenção da gravidez de uma menina de dez anos? Queriam defender “a família”? Que esta menina fosse mãe aos dez anos, e a mantendo assim permanentemente ligada ao tio estuprador com um filho em comum?

Eu já nem sei mais o que pensar dessas pessoas, suas mentes distorcem o que é crime e violência. Elas dispensam com uma facilidade cruel que o estupro é a origem e é o crime, e se aferram em lutar contra uma menina que está tentando e precisa sobreviver. Mas nenhuma dessas pessoas estava perseguindo o estuprador, ou divulgando o seu nome. Não preciso nem dizer o quão absurdo são os homens vociferando contra uma decisão que não lhes diz respeito nenhum e nunca irá ser sobre seus corpos e suas vidas. E aí vemos mulheres que esquecem da sua própria subjugação e fortalecem uma base política que só vai dar mais poder ao domínio masculino para seguir subjugando as mulheres. Muitas dessas mulheres já estiveram na agonia de uma gravidez indesejada e a própria incitadora de violência contra à menina, Sara Winter, realizou um aborto – e não é uma questão de mudar de ideia, é uma questão de hipocrisia máxima, de desonestidade, de carreira política ou de enriquecimento daqueles que tem como negócio lucrar com a fé das pessoas. Mas fora tudo isso, estamos falando de uma criança de 10 anos. Aonde está direcionada a fé dessas pessoas que não nas crianças e no seu futuro? Aonde está a dita fé das pessoas, que quando uma criança (palavra até mesmo utilizada como sinônimo de inocência) é imperdoavelmente chamada de assassina?

Felizmente esse bando de adeptos do aniquilamento dos direitos de meninas e mulheres não foram bem-sucedidos. Não conseguiram impedir aquilo que era vontade também da menina, que segundo ouvimos dizer, falava em querer se livrar daquilo tudo para voltar a jogar futebol.

Pelo fim das violências contra meninas e mulheres, pela descriminalização de mulheres que abortam e pela legalização do aborto, em todos os casos, nenhuma gravidez indesejada deve ser mantida. Ao contrário do que os ‘pró-vida apenas do feto’ dizem, a legalização do aborto não aumenta nem incentiva o aborto, pois com a legalização, se cria espaço para políticas públicas de saúde para meninas e mulheres, acesso a informação e desenvolvimento de métodos contraceptivos. Nós vivemos numa sociedade onde o aborto é crime, mas que não debate a cultura do estupro, muitas vezes nem sequer admite que exista, como os negacionistas que dizem não existir cultura do estupro e que sempre questionam ou culpam as vítimas das violências. A mesma sociedade onde a maioria das violências contra meninas e mulheres acontece em casa, onde os agressores são na sua maioria familiares. A descriminalização e legalização do aborto acomodaria inúmeras possibilidades para uma vida mais digna para nós mulheres e consequentemente para toda a sociedade. Mas sabemos que a dignidade das mulheres precisa estar sempre sendo atacada, só desta forma as opressões às quais somos sujeitas podem seguir beneficiando um sistema que se sustenta de nos explorar.

J.K. Rowling autora de Harry Potter é atacada nas redes por questionar o apagamento de mulheres

J. K. Rowling é mais uma vez atacada por questionar o apagamento da realidade de mulheres. A autora dos livros de Harry Potter está sendo duramente criticada e acusada de transfóbica pelo seguinte tuíte:

“Pessoas que menstruam. Tenho certeza que havia uma palavra para essas pessoas. Alguém me ajuda? Wumben? Wimpund? Woomud?” (O jogo de palavras aponta a obviedade do termo correto ser “woman”)

A legenda da matéria que ela questiona: “Opinion: Creating a more equal post-COVID-19 world for people who menstruate” – Opinião: Criando um mundo mais igualitário pos Covid-19 para pessoas que menstruam.

Parece que “Mulher” é uma palavra que deve ser banida, um significado sujo. Essa é a nova cara da misoginia. A que ponto chegamos para que uma mulher seja atacada por nos lembrar que pessoas que menstruam são mulheres? É de uma contradição e incoerência absurdas nos dizerem para não reduzirmos as pessoas à biologia e se referirem a nós como pessoas que menstruam. Extremamente ofensivo e redutor. As pessoas se ofendem com a palavra mulher, sentem vergonha, ou querem nos colonizar? E isso não é assustador? Mas seria ingênuo não entender que o que está acontecendo é a mudança proposital na linguagem por uma suposta inclusão de qualquer pessoa que queira ou se sinta permanente ou temporariamente como uma mulher às custas da exclusão de nós mulheres da nossa própria realidade material. Como se ser mulher fosse de fato um sentimento. Esta é uma questão teórica, que pode ser debatida com argumentação, mas não com este tipo de retaliação. As pessoas a essa altura já sabem, ou deveriam saber, que este é um posicionamento feminista estabelecido em como funciona a opressão das mulheres. Nós mulheres somos exploradas e discriminadas primeiramente pela nossa biologia, a opressão sobre nossas escolhas e sentimentos vêm como consequência.

Eu sinto uma revolta muito grande, uma profunda tristeza em ver que na verdade as pessoas não se importam de xingar publicamente as mulheres, tudo para se firmarem na mais nova tendência – de negação da nossa opressão. Daí o ator Daniel Radcliffe, protagonista nos filmes da saga, sem nenhum constrangimento decide criticá-la publicamente com uma espécie do que se tornou um mantra que nem sequer foi sobre o que J.K.Rowling disse, ele diz que “mulheres trans são mulheres”. Notem que o ator pegou o questionamento da Rowling de que pessoas que menstruam são mulheres e sua resposta foi “mulheres trans são mulheres”. Mas me pergunto por que ele fez essa volta? Por que ele não disse que “homens trans também menstruam”? Sabem por quê? Porque velado no seu discurso “pró trans” ele não tem a mesma consideração por este grupo de pessoas trans. E continua: “Qualquer declaração em contrário apaga a identidade e a dignidade das pessoas trans e vai contra todos os conselhos dados por associações profissionais de saúde que têm muito mais conhecimento sobre esse assunto do que Jo [J.K. Rowling] ou eu.” Nesta frase ele já usa do silenciamento, pois já nos “ensina” que não podemos declarar o contrário, não podemos ter outra percepção do que significa ser mulher, nem podemos lutar pelos nossos direitos como queremos. Em resumo, um homem se acha no direito o suficiente de dizer a J.K. Rowling que ela não tem o direito de lutar pelas mulheres como ela acredita. As pessoas começaram a dizer para ela calar a boca, ficar quieta, usaram termos como f***-se e toda espécie de xingamento. Tamanho conforto e segurança têm as pessoas de xingar uma mulher publicamente porque ela “ousou” falar o que pensa sobre o apagamento da realidade de mulheres, sem medo de serem acusadas de misoginia.

Mas nós estamos aqui para denunciar a misoginia de vocês e estamos guardando tudo o que vocês estão dizendo. Quando vocês perceberem que esta é uma tática de silenciamento de mulheres, que a propaganda contra nós muito difundida durante a caça às bruxas, é o que vocês estão fazendo tão à vontade, vocês talvez verão de que lado estavam e sintam, quem sabe, vergonha e arrependimento. Mas daí vocês já fizeram, vocês já contribuíram com a propaganda anti mulher de ódio à nossa realidade. Daí vocês já nos obrigaram a voltar vários passos atrás na nossa luta. Dai vocês já até mesmo nos dividiram o suficiente para seguir mantendo os homens em primeiro lugar.

Todas as matérias que vi aqui nos sites brasileiros tratam já como transfóbica a fala de Rowling. Eu vi apenas uma manchete que dizia que a autora havia sido ‘acusada de transfobia’, na maioria já está dada a sentença de transfobia como certa. No portal Ponte.org, tem uma ilustração com Rowling colocada como burra, com uma cara de quem não sabe o que está falando. É tão absurda a “charge” pois ela sabe exatamente do que está falando. Chamar a Rowling de burra? Haja misoginia pra isso. E haja espaço também para que se dê seguimento a isso em paz e harmonia. Esta matéria também dá dicas de como não ser transfóbico, e uma das regras para evitar pisar na bola diz para: “não reduzir as nossas existências as genitálias pois é mega transfóbico”. E aí dizem “crescemos em uma sociedade que acredita que meninas precisam e devem ter genitálias femininas e meninos precisam ter genitálias masculinas”. Pera lá, olhem a escolha e a manobra pra explicar a nossa sociedade em relação as mulheres! Crescemos numa sociedade onde meninas precisam e devem ter genitálias?! Ou crescemos numa sociedade que vê uma vagina e enquadra as mulheres na classe subjugada e explorada? E novamente, a resposta para não valorizar a genitália e o biológico é dizer “pessoas que menstruam”? Esta não é uma referência biológica?? Além disso podemos perceber que esses discursos sempre igualam mulheres e homens numa espécie de “opressão oposta que ambos sofrem” e isso apaga completamente a opressão de mulheres para dar lugar a uma “opressão geral” para homens também. A estratégia de apagamento também é em si uma forma de opressão pois sem sabermos o que nos oprime não teremos meios de como lutar e nos posicionar.

O fato é que os homens seguem sendo homens com H, fortes e assegurados de que nunca sofrerão ataques como estes dos quais nós mulheres somos alvos constantemente.

Nota Técnica Orientando o Aborto Legal Como Serviço Essencial Durante a Pandemia é Revogada e Autora Exonerada

Na sua cruzada contra os direitos das mulheres, Bolsonaro pressiona o Ministério da Saúde a desautorizar nota técnica que orientava os estados e municípios a manterem durante a pandemia o acesso a métodos contraceptivos e os serviços de aborto nos casos previstos em lei.

Nas suas redes sociais Bolsonaro postou que “o Ministério da Saúde está buscando identificar a autoria da minuta de portaria apócrifa sobre aborto que circulou hoje na internet”. A ameaça foi concretizada com a exoneração da Coordenadora de Saúde das Mulheres e outro integrante da equipe técnica da Secretaria de Atenção Primária à Saúde. O ministro interino da saúde Eduardo Pazzuelo, que também é general, assinou as exonerações. A postagem também dizia que “O MS segue fielmente a legislação brasileira, bem como não apoia qualquer proposta que vise a legalização do aborto, caso que está afeto ao Congresso”. A nota técnica não falava em legalizar o aborto, mas se referia ao aborto já legalizado no país. Se fosse para seguir “fielmente a legislação brasileira” tal coisa não poderia ser dita, pois é de direito das mulheres e adolescentes terem garantidos esses serviços e o acesso às suas informações. E porque foi elaborada por pessoas que pertenciam a Coordenação de Saúde da Mulher, a nota não pode ser considerada apócrifa.

Trechos da nota:

“Segundo a OMS, as unidades que oferecem serviços de saúde sexual e reprodutiva (SSSR) são consideradas essenciais, e os serviços não devem ser descontinuados durante a pandemia do COVID-19. Tendo em vista a desigualdade social no país, a dificuldade de oferta de alguns serviços de saúde para as populações vulneráveis nos diferentes estados, surge a necessidade de ações equânimes para assegurar o acesso a SSSR de qualidade, com vistas a reduzir a gravidez não planejada e eliminar a violência contra mulher”

“Os fatores relacionados acima têm potencial para impactar diretamente na SSSR das adolescentes e mulheres. Portanto, devem ser considerados como serviços essenciais e ininterruptos a essa população: os serviços de atenção à violência sexual; o acesso à contracepção de emergência; o direito de adolescentes e mulheres à SSSR e abortamento seguro para os casos previstos em Lei; prevenção e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis, incluindo diagnóstico e tratamento para HIV/AIDS; e, sobretudo, incluindo a contracepção como uma necessidade essencial”.

“(…) pode-se esperar o aumento de gravidezes indesejadas resultantes de relação sexual forçada. O acesso em tempo oportuno à contracepção de emergência deve ser pensado de modo a responder a esta necessidade das mulheres.” (“Relação sexual forçada” é estupro).

“Todas as mulheres devem ter acesso aos métodos contraceptivos e ao planejamento reprodutivo, principalmente neste período de pandemia.”

Com o aumento de casos de violência contra a mulher durante a pandemia, o acesso a contraceptivos, os serviços de aborto, o atendimento às vítimas de estupro, o tratamento de infecções sexualmente transmissíveis como citadas na nota numa tentativa de assegurá-las, precisam ser de fato serviços essenciais e não podem ser interrompidos durante a pandemia. A decisão de revogar a nota, é um ataque direto contra meninas e mulheres, às nossas vidas e aos nossos direitos.

Bolsonaro e seu governo seguem na sua campanha misógina e de retirada de direitos. E nós mulheres sempre soubemos que isso iria acontecer, nós sabíamos que nossas vidas estavam ameaçadas. Nós sabemos por experiência ancestral que nossas reivindicações são constantemente consideradas de segunda ordem por uns e completamente menosprezadas por outros. Somos criticadas na nossa luta que sempre desagrada, estamos sempre devendo à alguém, e somos esquecidas sistematicamente pela instituição masculinista, até porque ela precisa do nosso sangue para se manter.

A Verdadeira Discórdia

atualizado 01.06.20

Mulheres e homens nunca estão numa mesma situação. Isso é observável no cotidiano, na rotina das pessoas, nas casas, nas ruas, nos espaços públicos, no trabalho, e em situações extremas ou extraordinárias – como a da pandemia do novo coronavírus.

Sempre houve incongruência entre constatar e sentir as desigualdades e a opressão imposta a nós mulheres, do conceito de que nós feministas queremos promover a divisão e a discórdia. A divisão está dada, a discórdia é promovida há muito tempo e ela é fomentada pela necessidade masculina de ter o domínio ou domínios. A luta das mulheres não promove a discórdia, ela a denuncia.

Com o aumento das violências contra as mulheres e de feminicídios durante a pandemia no Brasil e ao redor do mundo, fica mais uma vez bem claro que nós nunca estamos na mesma situação que os homens. Ou “juntos no mesmo barco”. Homens próximos se mostram os verdadeiros algozes de mulheres que vivem com eles. A violência doméstica (patriarcal) já existia antes da pandemia, agora com a maior convivência com os agressores por razão do confinamento, a violência misógina tem ainda mais “oportunidade” e tempo para acontecer. A dificuldade das mulheres de procurarem e conseguirem ajuda durante o isolamento e a sensação de impunidade que os homens sentem com o próprio isolamento, são fatores que agravam. Os homens travam uma guerra contra as mulheres, e para muitas de nós a pandemia tem sido um desafio de sobrevivência para além do vírus. Como se já não fosse suficiente o risco da contaminação, se proteger em casa pode não significar de forma alguma proteção para muitas mulheres, mas o enfrentamento de violências constantes. As violências dos agressores, agora passam a ser justificadas pelo desemprego ou pela ansiedade que é estar numa pandemia. Mas estas são apenas desculpas para a violência masculina e misógina: o desemprego, a bebida, o ciúmes, a pandemia, seja o que for. As mulheres também estão sendo afetadas pelo desemprego, fato é que são a maioria das pessoas desempregadas e que aceitam trabalhos mais precários, e como consequência têm menos estabilidade e direitos trabalhistas. Aqui temos outro fator de diferença entre mulheres e homens numa “mesma situação”, pois o sexismo é estrutural e não iria diminuir durante a crise, mas se ampliar e se revelar ainda mais.

São também as mulheres as cuidadoras da casa e dos familiares, e agora se encontram ainda mais sobrecarregadas com a intensificação dos cuidados que a pandemia exige. É responsabilidade das mulheres a limpeza, a higienização, o cuidado e o preparo dos alimentos, o zelo com os familiares que estão mais em casa, incluindo as crianças que não estão indo à escola. O trabalho que não é remunerado. São as mulheres também que cuidam das pessoas doentes nas suas famílias, e se o sistema de saúde está sobrecarregado o peso recai sobre elas. É importante ressaltar que um dos fatores das mulheres aceitarem trabalhos mais precários e estarem em trabalhos informais ou fora do mercado de trabalho são porque estão cuidando de alguém.

As mulheres são a maioria das pessoas também na linha de frente no combate a Covid-19. Segundo a Pesquisa Perfil de Enfermagem realizada pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), as mulheres são 84,6% da equipe. Estudo da Fiocruz aponta feminização no setor de saúde com 70% de participação de mulheres, sendo 62% da força de trabalho nas categorias profissionais de ensino superior completo, e 74% com nível médio ou elementar. Os homens não se sujeitam a determinados trabalhos como as mulheres no setor da saúde, e ocupam cargos mais valorizados e mais bem pagos, são a maioria dos médicos, 54,4% segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM).

Aparentemente, a divisão sexual do trabalho e os papéis impostos às mulheres, tornam as mulheres mais expostas ao novo coronavírus. E as mulheres estão ainda mais expostas durante a pandemia à violência masculina na esfera doméstica. O impacto da pandemia é diferente para mulheres. E a longo prazo a instabilidade e precarização do trabalho e as dificuldades diversas durante a crise vão afetar de forma ainda mais bruta a vida das mulheres. É a continuidade da diferença.

[Repost] Chegamos no Dia internacional da Mulher

Chegamos no Dia Internacional da Mulher
sem que saibam o que é ser uma
sem que saibam de onde vem nossa opressão
outros protagonistas mais uma presunção
chegamos no dia internacional da mulher
e não querem saber como chegamos aqui
nem como sobreviveram nossas antepassadas
terem nos gerado é irrelevância
melhor quando esquecidas na sua insignificância
chegamos no dia internacional da mulher
o que fizeram não pode ser lembrado
e antes que o conhecimento seja repassado
deem um jeito dele junto ao corpo ficar soterrado
chegamos no dia internacional da mulher
nosso engenho é renegado
nosso sangue é derramado
nosso útero é desprezado
mas tem valor para ser alugado
chegamos no dia internacional da mulher
e ser mulher é uma roupa
ou fetiche
uma sensação matinal
que pode mudar no meio da tarde
ao estender uma roupa de baixo no varal
chegamos no dia internacional da mulher
e nosso corpo é tabu
é “biologia terf”
é biomedicina
é experimento
é xyz com vitamina
chegamos no dia internacional da mulher
e eles são comemorados
e o homem neste dia é situado
para garantir que ele sempre seja o primeiro colocado
chegamos no dia internacional da mulher
e nosso futuro é incerto
nossa esperança é abalada
mas quem se importa com gente desatualizada
chegamos no dia internacional da mulher
e a mais antiga opressão chamam de profissão
é capital é diversão
o poder tá na mão
o prazer está na exploração
chegamos no dia internacional da mulher
ela tá tentando escapar mas ninguém a nota
a quem interessa afinal
é só mais uma mulher morta
chegamos no dia internacional da mulher
o dia da arca de noé não esqueçam
é dia de salvar todas espécies que apareçam
porque afinal hoje é o dia de quem quiser

aline rod

Escrito e publicado pela primeira vez em março de 2018. http://acaoantisexista.com.br/chegamos-no-dia-internacional-da-mulher/

[repostando] A Questão do Desaparecimento – Uma Reflexão Sobre o Apagamento da Lesbianidade – Claire Heuchan

 

Repostando / data de 2017

Pelo dia e mês da visibilidade lésbica decidi fazer a tradução deste texto que trata de uma realidade atual das mulheres lésbicas. Que as mulheres lésbicas sejam ouvidas ao mesmo tempo que não silenciadas.
– 29 de agosto dia da visibilidade lésbica –

A Questão do Desaparecimento – Uma Reflexão Sobre o Apagamento da Lesbianidade
-por Claire (Sister Outrider)

Estes são tempos estranhos para ser uma jovem mulher lésbica. Ou melhor, jovial. No tempo que me levou para evoluir de uma inexperiente sapatão caçula em uma completa e formada lésbica, a tensão entre as políticas de identidade do queer e a libertação das mulheres se tornou realmente insuportável. O facebook adicionou reações da bandeira do orgulho gay no mesmo mês que eles começaram a banir mulheres lésbicas por nos descrevermos como butch (algo como sapatão ou caminhão em português). Enquanto a legislação de casamento e o direito de adoção para casais do mesmo sexo se tornam cada vez mais parte da sociedade dominante, o direito de mulheres lésbicas de se auto definirem e declararem seus limites sexuais é comprometido dentro da comunidade LGBT+. Tais contradições são características desta era, mas isso não torna elas mais fáceis de suportar dia após dia.

Amor é amor, a não ser que aconteça de você ser uma mulher lésbica – neste caso sua sexualidade será incansavelmente desconstruída sob suspeita de você estar sendo excludente. Como já escrevi anteriormente, cada sexualidade é por definição excludente. Sexualidade é um conjunto de parâmetros que governa as características que potencialmente nos atraem nas outras pessoas. Para lésbicas, é a presença das características sexuais primárias e secundárias das mulheres que geram (mas não garantem) a possibilidade de atração. O sexo, e não o gênero (nem mesmo a identidade de gênero), é o fator chave. Mas no ponto de vista queer, assim como no da sociedade patriarcal dominante), lésbica é uma designação contestável.

Mulheres lésbicas são encorajadas a se descreverem como queer, um termo tão abrangente e vago que parece ser desprovido de significado específico, pelos motivos de que ninguém que possuí um pênis é tido como inteiramente fora dos nossos limites sexuais. Jocelyn MacDonald coloca muito bem:

“Lésbicas são mulheres, e mulheres são ensinadas que devemos estar disponíveis sexualmente como objetos de consumo público. Então nós despendemos muito tempo dizendo “Não”. Não, nós não vamos transar ou nos relacionar com homens; não, nós não vamos mudar de ideia quanto a isso; não, este corpo não é território masculino. Lésbicas, hetero ou bissexuais, nós mulheres somos punidas sempre que tentamos demarcar limites. O queer sendo um termo genérico torna realmente difícil para lésbicas assegurarem e manterem estes limites, porque se torna impossível nomear estes limites.”

Em tempos em que o reconhecimento do sexo biológico é tratado como um ato de intolerância, a homossexualidade é automaticamente problematizada – as consequências não previstas das políticas identitárias de gênero são enormes e de largo alcance. Ou ainda, seria mais correto dizer, que a sexualidade lésbica virou um problema: a ideia de que nós mulheres direcionemos nossos desejos e energias de uma para outra continua suspeita. De alguma forma, o padrão de homens centrarem homens nas vidas deles nunca recebe o mesmo backlash (reação negativa, resposta em forma de ataque). As lésbicas são uma ameaça ao status quo, seja no heteropatriarcado ou na cultura queer. Quando nós lésbicas rejeitamos a ideia de nos relacionarmos com alguém com pênis, nós somos taxadas de “fetichistas de vaginas” e ginefílicas – Levando em conta que a sexualidade de lésbicas é rotineiramente patologizada no discurso queer, assim como a sexualidade lésbica é patologizada pelo conservadorismo social, não é surpresa para mim que tantas mulheres jovens sucumbam a pressão social e abandonem o termo lésbica em favor do termo queer. O auto apagamento é o preço da aceitação.

“Não é nenhum segredo que o medo e o ódio a homossexuais permeiam nossa sociedade. Mas o desprezo por lésbicas é distinto. É diretamente arraigado no repúdio à autodefinição da mulher, à autodeterminação da mulher, às mulheres que não são controladas pela necessidade, pelo comando ou pela manipulação masculina. O desprezo por lésbicas é mais comumente um repúdio político às mulheres que se organizam em seu próprio benefício em busca de estarem presentes no espaço público, de que sua força seja validada, que sua integridade seja visibilizada.

Os inimigos das mulheres, aqueles que estão determinados a nos negar a liberdade e a dignidade, usam a palavra lésbica para provocar o ódio às mulheres que não se conformam. Este ódio ecoa em toda parte. Este ódio é sustentado e expressado por praticamente todas as instituições. Quando o poder masculino é desafiado, este ódio se intensifica e se inflama de forma a ser volátil, palpável. A ameaça é de que esse ódio pode explodir em violência. A ameaça é onipresente porque a violência contra a mulher é culturalmente aplaudida. E assim a palavra lésbica, gritada ou sussurrada em tom de acusação, é usada para direcionar a hostilidade dos homens contra as mulheres que ousam se rebelar, e é também usada para assustar e intimidar as mulheres que ainda não se rebelaram.” – Andrea Dworkin

A política de identidade queer tende a pensar que mulheres nascidas mulheres se interessarem exclusivamente por outras mulheres é um sinal de intolerância. Não vamos desperdiçar parágrafos com equívocos. Este mundo já tem silenciamentos acerca de gênero mais do que o suficiente, e é invariavelmente as mulheres que pagam o maior preço por estes silenciamentos – neste caso, mulheres que amam outras mulheres. Então eu digo o seguinte: lésbicas negarem categoricamente a possibilidade de se relacionarem com alguém com pênis é tido como transfóbico pela política queer porque não inclui mulheres trans na esfera dos desejos de lésbicas. A lesbofobia inerente na redução da sexualidade lésbica à fonte de validação, obviamente recebe passe livre.

Ainda assim, a sexualidade lésbica não necessariamente exclui pessoas que se identificam como trans. A sexualidade lésbica pode se estender a pessoas que nasceram mulheres que se identificam como não binárias ou queergênero. A sexualidade lésbica pode se estender a pessoas que nasceram mulheres que se identificam como homens trans. Comparando a alta proporção de que homens trans auto identificados viviam como lésbicas butchantes de transicionarem, não é incomum que homens trans façam parte de relacionamentos lésbicos.

Aonde está o limite entre uma lésbica butch e um homem trans? Durante suas reflexões sobre a vida das lésbicas, Roey Thorpe considera que “…invariavelmente alguém pergunta: Aonde todas as butches foram parar? A resposta curta é masculinidade trans (e a resposta longa requer um artigo próprio). Em qual parte dentro do espectro de identidade termina o butch e o trans começa?

O limite é amorfo, embora de forma imaginativa Maggie Nelson tenta traçar em The Argonauts. O parceiro dela, o artista Harry Dodge, é descrito por Nelson como um “butch charmoso em T.” segundo Nelson “qualquer semelhança que eu observe nos meus relacionamentos com mulheres não é a semelhança como Mulher, e certamente não é a semelhança das partes envolvidas. Ao invés disso é a esmagadora compreensão compartilhada do que significa viver no patriarcado.” Dodge é gênero fluido e de aparência masculina. A testosterona e a cirurgia de remoção dos seios não removem a compreensão do seu local neste mundo como mulher. Estas verdades coexistem.

A ideia de que lésbicas são transfóbicas porque os limites da nossa sexualidade não se estendem em acomodar o pênis é uma falácia falocêntrica. E a pressão nas lésbicas para redefinirem esses limites é francamente assustadora – se baseia numa atitude do direito de propriedade sobre os corpos das mulheres, uma atitude que é parte do patriarcado e agora tem sido reproduzida na esfera queer. As mulheres lésbicas não existem para que sejam objetos sexuais ou fontes de validação, mas como seres humanos autodefinidos com desejos e limites próprios.

Conversar sobre a política queer com amigos homens gays da mesma idade que eu é algo revelador. Eu sou lembrada de duas coisas: para os homens, ‘não’ é uma palavra aceita como assunto encerrado. Com mulheres, o não é tratado como uma abertura à negociação. A maioria dos homens gays fica horrorizada ou então surpresa com a noção de que os parâmetros de suas sexualidades possam ou devam mudar de acordo com as imposições da política queer. Alguns (os mais sortudos – a ignorância é uma benção) não estão familiarizados com a fantasiosa teoria queer. Outros (os recentemente inciados) estão, como era de se esperar, resistentes a problematização da homossexualidade do ponto de vista queer. Teve um que chegou a sugerir que gays, lésbicas e bissexuais rompessem com a sopa de letrinhas do alfabeto da política queer e se auto organizassem especificamente em torno das suas sexualidades – dado que as lésbicas estão sendo sujeitas a caça às bruxas TERF (feministas radicais trans excludentes em português) por terem feito a mesma sugestão, foi ao mesmo tempo encorajador e lamentável ouvir de um homem que está fora do feminismo radical dizer a mesma coisa sem medo de ser censurado.

Fico feliz em dizer que nenhum dos homens gays que eu chamo de amigos optaram pelo que pode ser descrito como a lógica de Owen Jones: rejeitar as preocupações das mulheres lésbicas e as tratar como atos de intolerância, numa tentativa de conseguir biscoitos-de-arco-íris da aprovação como aliado trans. A onda de homens de esquerda em lucrarem com a misoginia para consolidar sua reputação é um conto tão antigo quanto o patriarcado. Não é uma grande surpresa que isso aconteça dentro da comunidade queer, já que a cultura queer é dominada por homens.

A comunidade queer definitivamente pode afastar as mulheres lésbicas. Embora eu tenha participado de espaços queer quando eu estava me assumindo, acabei me retirando cada vez mais daquele contexto com o tempo. Eu não sou de forma alguma a única – muitas mulheres lésbicas da minha faixa etária se sentem excluídas e deslocadas nos ambientes queer, lugares que nos dizem que deveríamos pertencer. Não são apenas lésbicas mais velhas que são resistentes a política queer, apesar de que deus sabe o quanto elas nos avisaram sobre a misoginia nela. Meu único arrependimento é não ter ouvido antes – que eu tenha perdido meu tempo e energia tentando conciliar divergências ideológicas entre o queer e o feminismo radical.

O discurso queer se utiliza de uma abordagem coerciva para forçar lésbicas a se conformarem – ou nós acatamos o queer e pertencemos ao grupo, ou nós seremos apenas figuras irrelevantes que estão “por fora” como “as velhas lésbicas chatas”. Esta abordagem, na misógina discriminação pela idade, foi equivocada: eu não consigo imaginar nada que eu quisesse ser mais do que uma lésbica mais velha, e é maravilhoso saber que este é o meu futuro. A influência que tem em mim a profundidade do pensamento das mulheres mais velhas, a forma como elas me desafiam e me guiam no processo de consciência feminista, tem um papel central em formarem tanto a minha noção sobre o mundo como compreender meu lugar nele. Se eu for realmente sortuda, um dia eu terei aquelas conversas elevadas (e as vezes, intelectualmente extenuantes) com as futuras gerações de jovens lésbicas.

Embora eu aprecie o apoio e a sororidade das lésbicas mais velhas (de longe meus seres humanos favoritos), em certos aspectos eu também as invejo pela relativa simplicidade da existência lésbica nos anos 70 e 80. A razão para esta inveja: elas viveram vidas lésbicas num tempo anterior a política queer se tornar dominante. Eu não estou dizendo isso desconsiderando ou implicando que o passado
foi uma utopia para os direitos de gays e lésbicas. Não foi. A(s) geração(ões) deles tiveram a cláusula 28 (“section 28”), cláusula que bania que a homossexualidade fosse considerada nas escolas como relacionamento familiar normal) e a minha tem o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Os avanços que beneficiam minha geração são resultado direto da luta deles. Ainda assim as lésbicas podiam viver pelo menos parte de suas vidas numa época em que de todas as razões pelas quais a palavra lésbica foi encarada com desgosto, ser considerada “demasiado excludente” não era uma delas. Não houve um ímpeto, dentro de um contexto feminista ou gay, tornar a sexualidade lésbica esquisita (“queer” em inglês, a autora aqui faz um trocadilho).

Algumas coisas não mudaram muito. A sexualidade lésbica é comumente degradada. As mulheres lésbicas ainda estão nas campanhas lésbicas do “Não se preocupe, eu não sou aquele tipo de feminista.” Só que agora, quando eu checo as minhas notificações no Twitter, realmente levo um tempo para descobrir se minha lesbianidade ofendeu a “alt-right” (nova denominação da extrema direita) ou da esquerda queer. Isso faz alguma diferença? A lesbofobia tem o mesmo formato. O ódio às mulheres é o mesmo.

Durante a Parada Gay, uma foto de uma mulher trans sorridente vestindo uma camiseta manchada de sangue dizendo “eu soco as TERFs” circulou nas redes sociais. A imagem tinha a seguinte legenda “isso é como a libertação gay se parece”. Aquelas de nós que vivem na intersecção entre a identidade gay e a mulheridade – lésbicas- são frequentemente taxadas de TERFs puramente pelo fato de que nossa sexualidade torna esta reivindicação dúbia. Considerando que vivemos num mundo onde uma a cada três mulheres sofre violência física ou sexual durante sua vida, eu não me surpreendo– não tem nada de revolucionário ou contracultural em fazer uma piada sobre bater em mulheres. A violência contra as mulheres foi glorificada sem pensar duas vezes, colocada como um objetivo de políticas libertárias. E nós todos sabemos que TERFs são mulheres, já que homens que definem limites são raramente sujeitos a tais ataques. Apontar a misoginia obviamente resulta numa nova enxurrada de misoginia.

Existe uma réplica preferida reservada para as feministas que criticam as políticas sexuais da identidade de gênero, uma resposta certamente associada mais com adolescentes meninos do que qualquer política de resistência: “chupe meu pau de garota”. Ou, se a maldade se junta com uma tentativa de originalidade, “engasgue com meu pau de garota”. Ouvir “engasgue com meu pau de garota” não parece nada diferente de ouvir te dizerem que engasgue num pau de qualquer tipo, mesmo assim isso se tornou já quase uma parte da rotina do discurso de gênero que se abriu no Twitter. O ato permanece o mesmo. A misoginia permanece a mesma. E isso está dizendo que neste cenário a gratificação sexual é derivada de um ato que muito literalmente silencia as mulheres.

Uma frase icônica de Shakespeare em Romeu e Julieta proclama que “uma rosa com qualquer outro nome teria um aroma igualmente doce.” Com isso em mente (por existir muito mais tragédia do que romance sobre esta situação), eu diria que independente do nome um pênis iria repelir sexualmente as lésbicas. E isso é ok. O desinteresse sexual não é a mesma coisa que a discriminação, a opressão ou a marginalização. Porém, sentir que a sexualidade é um direito que se tem sobre alguém é : ele é parte fundamental da opressão das mulheres, e se manifesta claramente na cultura do estupro. Dentro da concepção queer não há espaço dedicado para discussões sobre a misoginia que possibilita o se sentir no direito de ter acesso sexual aos corpos de mulheres. Simplesmente reconhecer que o assunto existe é considerado inaceitável, e como resultado, temos a misoginia protegida por camadas e camadas de silêncio.

Esta não é uma época radiante para se ser uma lésbica. A falta de vontade das políticas queer para simplesmente aceitar a sexualidade lésbica como válida por direito é profundamente desamparadora, ao ponto de se privilegiar o desejo de ter sexo sobre o direito de recusa ao sexo. E mesmo assim a conexão lésbica persiste, como sempre persistiu. Os relacionamentos lésbicos seguem florescendo enquanto oferecem uma alternativa radical ao heteropatriarcado – só porque não é particularmente visível agora, apenas por não ter o apelo dominante (isto é, patriarcal) que tem a cultura queer, não significa que não esteja acontecendo. As lésbicas estão em toda a parte – isso não vai mudar.

Nolite te bastardes carborundorum.

Claire

traduzido por Ação Antisexista

original:https://sisteroutrider.wordpress.com/2017/07/01/the-vanishing-point-a-reflection-upon-lesbian-erasure/amp/

post de 2017 neste blog que você está: http://acaoantisexista.tk/a-questao-do-desaparecimento-uma-reflexao-sobre-o-apagamento-da-lesbianidade/

 

Todos Contra a Mulher

 

Muito enervante tudo que envolve a acusação de estupro contra Neymar.
Não é que me surpreenda ver que a cultura do estupro anda de vento em popa, mas sempre me revolta ver o desprezo e o ódio às mulheres inseridos nos discursos, e que eles passem despercebidos. Desde que a acusação veio à tona, já vemos nas escolhas dos termos a minimização da violência, enquanto o mais ético seria chamar de acusação ou denúncia de estupro, preferem se referir como suposta agressão ou suposto estupro. A formação de opinião se faz desde o início da abordagem, reproduzida com intuito de descredibilizar a mulher, ou pela completa parcialidade nos “questionamentos” – que no final de contas são a própria cultura do estupro.

Junto com isso o que vemos é uma série de acusações à mulher, ao mesmo tempo que buscam inocentar as atitudes do homem. Nunca a gente vê as pessoas justificando em massa a atitude da mulher, já o comportamento do homem é tido como aceitável. É considerado normal usar de poder e dinheiro para conquistar mulheres, mas a outra via é veementemente rechaçada. Eu não estou afirmando que foi isso que atraiu a Najila (o poder, a fama, o dinheiro), mas se ela é criticada por “se vender”, o Neymar teria que ser criticado por “comprar”. É disso que estou falando, da discrepância nas críticas, na parcialidade do que é moral e aceitável e do que não é. O homem com dinheiro e fama é muito poderoso, porém não ouvi nenhuma vez de que Neymar quis se aproveitar de sua posição para fazer uma conquista, mas ouvimos até agora muitas vezes que Najila quis se aproveitar da fama, dinheiro e poder de Neymar, mesmo que ela nem tenha como reter nenhuma dessas coisas consigo, pois pertencem a Neymar. Mas o corpo da mulher, este pertence ao homem, sempre é justificável acessar os corpos de mulheres através de dinâmicas que refletem a desigualdade e até mesmo quando se usa de violência.

E então o próprio Neymar coloca o caso abertamente através de uma rede social expondo uma conversa íntima que teve com Najila que incluía os nudes que ela havia enviado de forma privada a ele. Além da exposição em si ser humilhante (nem vou entrar no mérito de ser crime), qual a relevância das mensagens e seu conteúdo para o caso? Nenhuma pessoa tem obrigação de performar nenhum ato sexual que não queira não importando em que momento dos acontecimentos. Quando uma pessoa diz não, é não e pronto, não importa que a pessoa foi até lá, que agora tá nua, que deu uns beijos e uns amassos. Qualquer pessoa tem o direito de ao se sentir acuada, agredida, ofendida, ou mesmo desconfortável, desistir do que for que esteja rolando. A Najila disse que não queria sem preservativos e ele não aceitou e a forçou. Ponto final da história.

É tão triste toda esta história, tão deprimente de ver que a própria Najila se vê obrigada a entregar provas, vídeos, áudios da violência. Os advogados dela para a nossa estupefação não fizeram orientações básicas, e eles mesmo fazem o papel dos advogados de defesa de Neymar (pois é né), ao dizerem que sem tais provas “não dá para defendê-la”. Desde quando vítimas de violência sexual precisam de registro da violência em vídeos? E se ela nunca teve os vídeos? E se ela disse que tinha gravações porque achou que era a única forma de conseguir dar início a uma denúncia? Novamente, não estou dizendo que ela não tem os vídeos, mas que pouco importa que tenha, se tivesse algo registrado que incriminasse o Neymar, facilitaria a acusação, mas isso não é imperativo para uma denúncia de estupro. Se, como estão supondo, ela mentiu sobre os vídeos, mancha a credibilidade dela? Sim, e a credibilidade de Neymar? De repente aquele cara que sempre foi considerado desonesto nas suas quedas em campo passou a ter sua credibilidade intocável.
Já o primeiro advogado saiu do caso porque segundo ele Najila tinha dito que havia sofrido uma agressão e que o ato sexual tinha sido consensual. Ele diz que ela afirmou que “durante o ato Neymar se tornou uma pessoa violenta, agredindo-a”, e segue dizendo que este seria “o fato típico central (agressão) pelo qual ele deveria ser responsabilizado cível e criminalmente”. Mas só um pouco aí, o ex advogado de Najila ‘acusa’ ela de no boletim de ocorrência ter feito uma “alegação totalmente dissociada dos fatos descritos”, se referindo ao que ela disse aos sócios advogados. Mas e a dissociação que este advogado tá fazendo sobre o que caracteriza um estupro? Como é possível definir que as agressões físicas de Neymar contra Najila não significam coação e consequentemente estupro? E como que um advogado ao ouvir uma cliente lhe contar sobre as agressões que foi vítima durante um ato sexual, não pensou ele mesmo (como advogado que é!) que isso caracteriza coação sexual? Porque é muito provável que ele mesmo ache ser dentro da normalidade que homens sejam violentos com mulheres, e que toda mulher deve no fundo gostar. Mas o que mais me impressiona é concluir sem sombra de dúvida que “até aqui” é só violência física, e que só “à partir daqui” é estupro, descartando-se fatores psicológicos envolvidos durante o processo todo. Não, este não é trabalho de um advogado de acusação de estupro. E é correto que advogados exponham conversas que tiveram com ex cliente?

Daí surgiu a advogada feminista para defender o jogador. E por decidir defendê-lo, ela foi expulsa do Cladem – Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, que é uma entidade de advogadas feministas da qual a advogada fazia parte. Eu fiquei bastante contemplada com a decisão do Cladem, que sem hesitar tomou a única atitude possível para o que se propõe. Aliás poderia corrigir o título com “Todos, menos o Cladem, contra a mulher”. Em nota o Cladem diz:

Entendemos que toda e qualquer pessoa tem direito à defesa dentro dos limites processuais estabelecidos pela ordem jurídica. De modo que, considerando as recentes denúncias envolvendo o jogador Neymar Jr., a ele deve ser assegurado o devido processo legal.

Entendemos também que todo e qualquer advogado e advogada tem constitucionalmente o direito ao livre exercício de sua profissão, descabendo perquirir-se publicamente acerca dos motivos pelos quais um ou outro caso lhe é oferecido e aceito.

Contudo, sendo o CLADEM uma organização composta por advogadas feministas, com mais de três décadas de atuação ética em defesa dos direitos das mulheres e, por consequência, de luta contra a violência simbólica que se expressa dentro e fora do sistema de justiça criminal em casos a envolver violência contra as mulheres, em especial quando o debate público versa sobre o estupro, comunica que a advogada Maíra Fernandes, recentemente contratada para a defesa do jogador Neymar Jr., conforme tomamos conhecimento via imprensa, já não mais pertence a nossa organização.”

Ou seja, não há dúvidas de que o Cladem acredita que toda pessoa tem direito à defesa, e de que não se opõe que Maíra Fernandes tenha direito a sua decisão como advogada, porém não lhe compete enquanto feminista defender um homem acusado de estupro. A premissa feminista é jamais presumir que uma mulher que denuncia uma violência sexual esteja mentindo. Não tem absolutamente nada de errado com a decisão do Cladem – que foi repudiada pela OAB. A advogada não foi desligada da entidade pelo seu direito de advogar, mas por ferir um conceito básico feminista, numa organização feminista. Mas ainda vamos precisar de muito tempo para termos nossas formas de nos organizarmos compreendidas.
Uma outra coisa que me chamou a atenção sobre a advogada, foi a sua declaração, em que ela diz que se convenceu, “absolutamente, de que se trata de uma falsa acusação de estupro” e “o que vi me deixou em tudo confortável para exercer a defesa do cliente”. Como feminista eu posso dizer, não é possível se sentir “em tudo confortável” com uma falsa acusação de estupro. Como advogada ela pode se sentir para defender Neymar, mas não como uma feminista. E é esta a exata razão de que ela não está sendo questionada como advogada, mas como feminista. Além disso, jamais pode ser confortável para nenhuma feminista saber que uma mulher fez falsas acusações de estupro, se é uma coisa que nos atrapalha e machuca é oferecer chances para descredibilizar as mulheres que sofrem violências.

“A Najila se complica” é o que mais lemos nos jornais. Ela de fato não é “a vítima perfeita”, ela enviou nudes, trocou mensagens de cunho sexual, o ex-marido e os advogados dizem que ela é vingativa, temperamental e acusam que ela mentiu sobre o vídeo, sobre o arrombamento, sobre muitas coisas. Mas nada disso, mesmo se provado verdade, nega em si que ela foi agredida e abusada, e antes mesmo de todas estas coisas virem a conhecimento publico ela já foi acusada de mentir. Este é o ponto – a primeiríssima reação da sociedade é sempre inocentar o homem acusado de estupro, enquanto acusam a mulher de estar mentindo. É sempre igual, já vimos todas as vezes que surgiram acusações semelhantes. No dia 1º de junho veio de conhecimento público a acusação, e já no dia 6 um deputado do PSL/RJ protocolou um projeto de lei em referência ao caso envolvendo Neymar, segundo o próprio deputado. Mas como foi possível tirar uma conclusão precipitada de falsa denúncia? Como é possível que isso seja algo cabível? Para nosso maior infortúnio a lei foi apelidada por internautas de lei Neymar da Penha. Não é possível descrever o ultraje e o desrespeito a alusão. Maria da Penha sofreu duas tentativas de assassinato pelo seu marido, e por decorrência das agressões ficou paraplégica. A lei que leva seu nome não só é importantíssima ao combate da violência doméstica contra as mulheres no Brasil, como é referência mundial. Além deste, foram apresentados mais 4 projetos, fechando um total de 5, em apenas poucos dias depois da acusação contra Neymar. Eduardo Bolsonaro parabenizou as iniciativas “para agravar pena de mulheres inescrupulosas que acusam falsamente homens de crimes e calúnias. Acredite, tem mulher bandida que faz carreira assim”, tuitou.

Fica bastante claro que proteger Neymar tem como objetivo proteger todos os homens. Sabemos o quanto é comum e tido como normalidade forçar uma mulher no sexo, como é corriqueiro que homens não aceitem usar preservativos, que se tornem agressivos, entre outras atitudes coercitivas. Inocentar Neymar antes de qualquer investigação é tanto causa como consequência da cultura do estupro, assim como da estrutura patriarcal que subjuga as mulheres.