A fala de Eduardo Bolsonaro escancara a misoginia da linguagem pretensamente inclusiva

É possível que agora que o Eduardo Bolsonaro se referiu às mulheres como “portadoras de vagina” as pessoas compreendam o quanto é ofensivo e reducionista utilizar termos como este para se referirem a nós mulheres. “Portadoras de vaginas”, “pessoas com útero”, “pessoas que gestam”, são termos tidos como inclusivos, já que falar ‘mulheres’ é excludente na cabeça de muitos que se dizem progressistas. Então se você fala que absorventes deveriam ser gratuitos para as mulheres, alguém vai ‘exigir’ que você ‘corrija’ o termo para “pessoas que menstruam” porque “mulheres trans” não menstruam. Eu sei que também dizem que são termos para incluir “homens trans” que não querem ser chamados de mulheres. Mas isso nunca resolveu nada nem para essas pessoas que não podem ser reduzidas a portadoras de genitais ou órgãos, é uma coisa desumanizante. É ofensivo e é uma forma de apagamento de mulheres. A palavra mulher tá quase uma palavra proibida. Quando feministas apontam o problema desses termos de “substituição” somos atacadas com xingamentos e taxativamente comparadas com conservadores. Isso deveria servir de aprendizado também para que os debates com feministas sejam feitos com argumentações e não ataques convenientes e de silenciamento de mulheres. Porque por conservador, olha ele aí.

‘De repente’ soou ruim, estranho, misógino e nitidamente como um ataque as mulheres se referir as parlamentares como portadoras de vaginas. É o que nós feministas radicais estamos dizendo faz muito tempo. Até mesmo entre feministas temos tido dificuldades quando denunciamos que somos desumanizadas constantemente com a utilização de termos proclamados inclusivos. Termos que só resultam no desaparecimento do porquê das nossas lutas e no nosso próprio desaparecimento. Isso porque mulher é pertencer a uma classe subjugada, e somente nos reconhecendo como classe que é possível nos organizarmos e combatermos as opressões contra nós. Se não existe mulher não existe opressão contra a mulher.

A Linguagem Misógina do Discurso Liberal e o Apagamento da Realidade das Mulheres

“Bio chicas” é um dos termos mais ofensivos e desrespeitosos que já ouvi ser usado para se referir a meninas. Ouvi este num debate sobre “desconstrução de gênero”. Engraçado, que esta abordagem de desconstrução nada mais é que apagar a opressão e exploração que nós mulheres sofremos desde que nascemos. Engraçado que esta tal desconstrução tem o objetivo de negar que a opressão e a exploração das mulheres são baseadas no sexo. O gênero é uma construção social, determinada pelo sexo, ou alguém acredita que é tirado unidunitê a cada pessoa que nasce e que se escolhe por acidente qual gênero esta pessoa vai ter? O gênero é determinado pelo sexo e vai determinar o tipo de tratamento que uma pessoa vai receber. As mulheres vão fazer parte da classe subordinada e os homens farão parte da classe dominante, e isso significa que as mulheres terão seus corpos controlados pelo estado e suas leis – por exemplo a criminalização do aborto – sendo as mulheres punidas por tal crime, correndo risco de vida em aborto clandestino, ou ainda obrigadas a manter a gravidez contra a sua vontade independente das condições que se encontram.
Este tratamento determinado pelo sexo também significa que as mulheres serão vistas como propriedade dos homens de tal forma que a violência perpetrada pelos homens contra as mulheres se dará tanto por homens próximos como por estranhos, fazendo parte da guerra não declarada contra as mulheres, o que por sua vez significa todos tipos de violência incluindo tirar suas vidas – o feminicídio.
Esse tratamento igualmente significa que as oportunidades na vida serão distintas desde a infância, sendo a autoestima e a autoconfiança de uma menina completamente atacadas desde muito cedo enquanto as dos meninos comumente estimuladas e insufladas. Isso significa que os corpos dessas meninas serão objetificados e hipersexualizados desde pequenas. Isso significa que meninas e mulheres fazem parte da classe que sofre de forma incontestavelmente maior com abuso e violência sexual.
Isso significa ainda, que estas oportunidades continuarão sendo distintas e que as mulheres irão receber salários menores pelos mesmos serviços prestados, ou serão “naturalmente direcionadas” a profissões menos valorizadas. Isso significa que a prostituição será uma “oferta” incomparavelmente mais presente para mulheres e meninas. Isso significa que as mulheres serão as protagonistas da tortura sofrida na pornografia que vende o estupro e a violência contra a mulher como entretenimento e diversão. E isso por sua vez significa manter a cultura do estupro.

Simplesmente não querem se referir as meninas como meninas porque isso estaria excluindo “meninas não bio”, considerando o sentimento destas mais importante e relevante do que as consequências materiais da opressão baseada no sexo que se seguirá por toda a vida de uma menina. Infelizmente a esquerda foi cooptada pelo liberalismo e não percebeu, e estamos vendo uma onda de políticas identitárias substituindo o feminismo e o tratando como ultrapassado. Não só negando o feminismo, mas distorcendo e moldando a luta das mulheres para que atenda as necessidades de outros grupos – porque as mulheres nunca serão prioridade. Sabemos muito bem que pertencemos a segunda classe no patriarcado, somos tratadas desde que nascemos assim, sabemos que a misoginia é tão verdadeira e poderosa que o backlash* sempre vai acontecer de uma forma nova e revestida.

Agora temos que lidar com o discurso do “subversivo” que nada mais é do que estar disfarçado nesta categoria, porém mantém a mesma ordem de que nós mulheres sejamos exploradas e que temos que acatar isso caladas. O discurso do subversivo ataca erroneamente as feministas chamando-as de conservadoras para ganhar a discussão. Argumento desonesto e sem absolutamente um mínimo de entendimento do que significa a luta feminista e o que significa a importância de garantir que não sejamos silenciadas.

O discurso liberal tá se encarregando de criar, “em nome da diversidade”, vários termos que apagam as realidades de nós mulheres, nos sufocando com o intuito de extinguirem nossa resistência. Porém isso nunca vai acontecer. Enquanto houverem mulheres nesse mundo haverá luta. Enquanto formos exploradas e oprimidas sempre haverão mulheres priorizando sua sobrevivência.

aline rod.

*backlash no contexto feminista é o contra-ataque ou reação negativa ao feminismo.