Estupro. Violência e terrorismo que é realidade das mulheres. Não, não consegui me expressar direito. Jamais conseguiremos expressar a brutalidade de um estupro. Jamais conseguiremos através de palavras fazer jus ao que as mulheres estão passando desde sempre.
Ontem cheguei em casa e vi três notícias, uma atrás da outra. As três notícias eram:
-Duas adolescentes foram encontradas mortas enforcadas, penduradas numa árvore em uma vila no norte da Índia, depois de terem sido estupradas por cinco homens na última quinta feira.
-Menina de quinze anos foi estuprada por trinta e oito homens no norte da Malásia.
-Adolescente estuprada por cinco jovens em Pinhal (RS). Os estupradores filmaram e repassaram o vídeo pela internet.
Mais uma vez, mais um dia, mais uma mulher.Todos os dias mulheres são estupradas. Em todas as partes do mundo.Todos os dias mulheres são assassinadas.
Estou falando de estupro, esta violência que as mulheres sofrem dos homens. Não quero falar em violência “de gênero” e omitir quem é o agressor e quem é a vítima. Estou falando de estupro, esta de uma das faces da misoginia, do sistema patriarcal. Estou falando de estupro, do que as mulheres têm que passar, que está no nosso imaginário, na nossa biografia. Esta ameaça a qual estamos “habituadas” desde muito pequenas e que lutamos para que não nos aconteça. Mas nos acontece. Que é seguida de morte ou não. Mas que sempre alguma coisa mata.
O estupro é a face do machismo que viola nossos corpos, onde o estuprador quer ter o poder, quer ter o controle, quer minar que continuemos vivendo como vivíamos até então. Quer matar se não a gente a nossa liberdade. Porque não podemos ser livres. Não podemos escolher, decidir onde vamos, como estamos, nos sentimos. Não podemos gesticular, nos mover como queremos, isso tem que ter um preço. Precisamos ser castigadas. Só uma mulher sabe como sua vida, seu diário é baseado, é modificado, é moldado por esta constante ameaça.
Conheci mulheres que negam isso. Que dizem que não sentem o machismo. Que hoje em dia “isso” acabou. Quando questionei amigas que disseram essas coisas lhes perguntando “por que então você está chamando seu amigo para lhe acompanhar até sua casa?”, “por que você não vai a pé se é tão perto?” elas perceberam na hora o que até então não tinham levado ao nível da consciência.
Mulheres procuram proteção, e muitas vezes de outros homens. Os homens nos massacram e nos “salvam”. Mas nós sabemos que não é viável depender de um homem. Mulheres carregam chaves nos meios dos dedos, olham para trás com qualquer barulho, entram em banheiros públicos acompanhadas umas das outras, ou com muito cuidado, ou não entram, verificam portas e janelas quando estão sozinhas em casa de forma compulsiva, mudam de roupa, não correm em parques à noite, ou mesmo durante o dia, fazem autodefesa, carregam spray de pimenta, faca, arma de fogo, em fim, estamos sempre em alerta. Uma destas ações ou várias delas combinadas ou todas e muitas outras, fazem parte da vida das mulheres. Eu não estou preocupada se isso é paranoia para você. Se isso é muito pouco relaxante, ou pouco zen, ou pouco qualquer teoria mística. Porque estas coisas talvez não sejam para as mulheres. Estas coisas são privilégios de homens. A nós resta a “paranoia”. A nós resta a auto defesa necessária, a força e a técnica necessárias para seguirmos confiantes. E quem alcança esta força e técnica ao ponto de se sentir intocável? E aonde está o acesso a isso? E com quem está o conhecimento? Não estou desmotivando a autodefesa, pelo contrário, acredito ser fundamental para nossa autonomia. Mas não é como nadar num rio e se deixar levar numa corrente segura e morna. É uma luta. É um aprendizado. E também é uma capacitação que nem todas tem as mesmas chances ou vontade para tanto.
E com toda esta realidade que se mostra da forma mais hostil possível, nós ainda temos que nos calar. Nós mulheres somos violentadas e silenciadas ao mesmo tempo, obviamente, uma coisa é intrínseca a outra.
Somos silenciadas quando não nos acreditam. Somos silenciadas quando dizem que estamos exagerando. Somos silenciadas quando somos chantageadas de que estragaremos as coisas, a família, a cena “libertária”, a harmonia no trabalho, na escola, a boa vizinhança. Somos silenciadas com ameaças de mais violência, de morte, de exclusão. Somos silenciadas quando nos dizem que mulheres também estupram, quando não é dito para darmos atenção a esses casos – que também são fruto da cultura machista – mas para tirar nossa razão e vaporizar nossos inimigos. Somos silenciadas quando dizem que homens também são estuprados, sendo que sabemos que quando isso acontece os agressores são na quase totalidade homens, e isso não ajuda em nada os homens, geralmente meninos, que são estuprados. Isso também não é para dar a atenção devida a este menino, este homem, é um argumento utilizado de forma suja, sem solidariedade com estes meninos, com estes homens. É para nos calarem que usam destes argumentos. Somos silenciadas quando acusam textos como este que escrevo de cissexista porque ousa falar de mulheres. Então todas as especificidades que nós mulheres passamos são desvalorizadas, desprezadas, jogadas no lixo porque estamos sempre esquecendo alguém. Eu estou falando de mulheres porque, feminismo? Estou falando da violência dos homens contra as mulheres porque esta é a lei misógina. E caso precise lembrar misoginia é o ódio contra as mulheres, é o profundo desprezo pelas mulheres. Obviamente qualquer pessoa que seja “reduzida” a esta categoria sofrerá consequências da misoginia com suas especificidades.
E misoginia é também silenciar as mulheres e desprezar a forma como queremos nos organizar. É dizer a nós como devemos fazer o feminismo e o que o feminismo tem que abraçar, do que ele “deve” tratar.
E somos silenciadas quando não podemos denunciar o estupro pelo risco de respondermos a um processo judicial, fundamentado em leis machistas que favorecem os homens que estupram.
Nós mulheres somos estupradas e silenciadas pelos homens, somos silenciadas por suas leis e suas crenças e por quem compra essas leis e essas crenças.
31.05.2014